"A aprendizagem e a construção do conhecimento são, pois, concebidos como aspectos integrantes da prática. Prática em articulação com a teoria, aliando sonho e ação"
Interações dialógicas e construção do
conhecimento
André Moura e Elisângela Alves
Cátedra UNESCO PUC-Rio
de Leitura
A condição da existência humana no mundo nos impele a trafegar
constantemente em instância dialógica. O indivíduo em interação com a natureza,
em integração com a cultura, em debate com seus anseios reprimidos e desejos
manifestos. O ser em embate com o transcendente, em xeque com o incognoscível,
em diálogo com o outro... A relação entre as dimensões da identidade e da
alteridade se dá na mesma clave que trama e urdidura no tear. Identidade e
alteridade em um tecido bem trançado, pois o que seria a relação com o outro
senão a relação com si mesmo? Com as devidas lacunas a serem preenchidas de
modo incessante.
Cumpre recordar que a relação do homem com este mundo dialógico que o
cerca – em eterna busca do conhecimento – acontece por intermédio de sua
interação com a linguagem. É a palavra que
nomeia a realidade, organiza o questionamento, que desconstrói a realidade por
ela anteriormente nomeada. Viver em uma sociedade que transmite a produção de
seu conhecimento através da palavra falada, escrita, sinalizada ou transmitida
por pixels é ler nas entrelinhas o
reiterado plano da dualidade. Como uma ponte, para se construir um diálogo, há que
se ter dualidade: duas margens, duas pontas. Duas perspectivas, dupla porta. Entreaberta. Sob
o signo do sentido bífido, travam contato tanto dualidade quanto duplicidade.
Como se puxássemos o fio de metafórica meada, vale convocarmos o “cantor
da polifonia” Mikhail Bakhtin. Segundo o pensador russo “toda palavra comporta
duas faces”. A face de partida, palavra emitida e a face de chegada, palavra do
destinatário. A troca – em diálogo – com o outro se expande em uma relação com
os indivíduos mas também fenômenos, com os objetos, o mundo é o interlocutor. Outro
trecho luminar do pensamento de Bakhtin “toda palavra serve de expressão de um
em relação ao outro. Através da palavra defino-me em relação ao outro, isto é,
em última análise, em relação à coletividade.” Poderíamos inferir que a relação
dialógica guardaria em si uma dimensão triádica, na qual o terceiro elemento é
a coletividade? Sabemos que o diálogo é composto do falante, do interlocutor e
da língua, ou melhor, num sentido mais abrangente, da linguagem. Em realidade,
Bakhtin reforça que o dialogismo se insere em uma perspectiva sociocultural. Ou
seja, o falante estabelece um “contrato” com o interlocutor, que influenciará o
locutor, que terá seu enunciado alterado tanto na organização quanto na estrutura.
A literatura, a arte, de modo geral, é prolífica em apresentar
personagens em conflito com a sombra, com o espelho, com o reflexo, a alma, o
outro. Alice através do espelho; Dorian Gray e seu retrato; a rainha-madrasta
de Branca de Neve e o seu espelho bancando o oráculo e por que não? –
considerando a vaidade como vereda do destino – verdadeiro algoz? Narciso
encantado pelo próprio reflexo – fundador da auto-consciência – ou a nova
teoria da alma humana, no prisma de Machado; e Guimarães Rosa, para citar
apenas uma de suas “estórias”, ao engendrar seu diálogo de espelhos, peça de ourivesaria espelhada no conto do
Mestre, estilhaçando-nos com sua pergunta: “– Você chegou a existir?” Seriam
infindáveis os exemplos do espelho como espaço de experimentação. Outras vezes
é o interlocutor que se assemelha ao reflexo, induzindo à reflexão por parte do
locutor, nos diálogos que tanto podem ser duetos ou duelos. A boneca Emília e o
sábio sabugo Visconde; Édipo e a esfinge; Caim e Abel; a presença do outro que faz
as vezes de comparsa, de cúmplice, na condição de contraponto, numa interação
dialógica da voz e com sua contraluz.
Para a construção do conhecimento, todo e qualquer conhecimento, é
necessário o conhecimento do outro, a consciência do saber diverso que o
interlocutor traz é básico, é ponto de partida para adenar o argumento. Tão
fundamental ao pensamento, pois é na relação de alteridade que se instala a
crítica, é o crítico (que pode ser o auto-crítico) que instaura a perspectiva responsável
pela justa medida. Pois o pensamento pode ser embriagante, entorpecedor,
alienante como na alegoria platônica d´O mito da caverna. Nunca é demais
resgatar uma boa história, fábula ou mito. A parábola escrita pelo filósofo em
“A República”, além de sua discussão central entre essência e aparência,
discute a importância do diálogo, da alteridade, da opinião dissonante no
processo epistemológico. Recordando aquele único habitante da caverna que se liberta dos grilhões e que, após ver a
luz e a realidade fora da caverna, entra em contato com a verdade filosófica
por oposição às crenças e superstições, é o diálogo com esta outra realidade
que faz que ele construa um novo paradigma. E supondo o seu retorno a fim de
libertar seus companheiros, o embate com os ainda acorrentados é uma interação
dialógica que pode fazer com que ele reforce sua filosofia ou mesmo a
descarte.
O dialogismo que tanto ocorre na dimensão ontológica,
enquanto fenômeno, voltado para o sujeito e também em nível epistemológico,
quanto existe como conceito, direcionado para o objeto pode ser capaz que
atender problematizações que ultrapassam processos lineares ou linearizantes,
analíticos, que não operam na interface, reduzindo a complexidade pós-moderna.
O dialogismo, o diálogo compreendido de forma plural enquanto locus e processo
de construção intersubjetiva de sentidos. São as várias vozes que dão ao saber
um caráter polifônico que começa a se aproximar do que a realidade encerra. A
aprendizagem e a construção do conhecimento são, pois, concebidos como aspectos
integrantes da prática. Prática em articulação com a teoria, aliando sonho e
ação.
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